OBJETO-CORAÇÃO II
Um homem de costas, com a cabeça encostada numa enorme parede preta. Outro, um pouco afastado do primeiro, de frente, absolutamente, imobilizado por grossas correntes. Este é cego, surdo e mudo. O outro é sagitariano, com ascendente e lua em gêmeos.
O homem com a cabeça encostada na parede - Eu escuto a sua voz dentro da minha cabeça - quase o tempo inteiro. Eu sei. Não é você. Não pode ser você. Não é exatamente sua essa sua voz que eu ouço, o tempo inteiro, dentro da minha cabeça. Sou eu quem faz você falar. Sou eu, na minha cabeça, o tempo inteiro, falando por você. Também, você não fala mais. Nem ouve. Nem enxerga. E faltaram umas coisas que eu queria te perguntar. Só que você não reage mais aos meus estímulos. Por que os pais amam os filhos? Não fala, nem ouve, nem enxerga. Não cala a boca dentro da minha cabeça, mas também não me responde nada. Por que os pais amam os filhos? Você poderia se mexer se quisesse. Sair daqui, ir para outro lugar, me deixar enfim. Eu ficaria bastante satisfeito.
Silêncio.
O homem com a cabeça encostada na parede - Não vai a lugar nenhum. Isso não vai nos levar a lugar nenhum. Vamos ficar aqui até o fim do dia. Fim do mês, fim do ano e por aí vai. Por que você não se mexe? Você parece um paralítico. Não parece surdo nem mudo nem cego, mas parece um paralítico em pé. O que foi que te paralisou desse jeito? Queria tanto que você pudesse me responder. Perguntas simples. O que foi que te paralisou desse jeito? Por que os pais amam os filhos? Por que escuto a sua voz dentro da minha cabeça quase o tempo inteiro? Me diga coisas agradáveis, por favor. Apenas coisas agradáveis. Receita de um bolo de cenoura com cobertura de brigadeiro, por exemplo. “Para fazer o brigadeiro, leve ao micro-ondas, na temperatura máxima, uma lata de leite condensado misturada com chocolate em pó e um pouquinho de manteiga. Pouca manteiga. Você tem que mexer de dois em dois minutos se não transborda e suja tudo.” Pare de cantar que você canta muito mal.
Silêncio.
O homem com a cabeça encostada na parede - Sempre fico pensando no que você estará pensando. Você agora só faz pensar, nada mais. Não fala, não ouve, não enxerga e não quer se mexer. Fica apenas pensando e é isso que te diferencia dessa parede com quem agora eu vivo. Minha parede. Um homem pensante foi no que você se transformou, no que se resumiu. E eu também fico pensando agora. Só que a sua voz dentro da minha cabeça me atrapalha um pouco os pensamentos. Me deixa confuso. Você ia gostar de se ver dentro da minha cabeça, ia gostar de se ouvir me dizendo coisas produtivas. “Faça isso, coma tudo, limpe o prato com a língua depois coloque no armário”. Será que você pensa em mim? Será que você escuta a minha voz dentro da sua cabeça lhe dizendo coisas produtivas? Apague a luz, feche a torneira, organize os cds por ordem de predileção. Perguntas simples. Por que os pais amam os filhos?
Silêncio.
O homem com a cabeça encostada na parede ( cantando) -
It’s been 7 hours and 15 days / Since you took your love away / I go out every night and sleep all day / Since you took your love away / Since you’ve been gone I can do whatever I want / I can see whomever I choose / I can eat my dinner in a fancy restaurant / But nothing / I say nothing can take away these blues / Cause nothing compares / Nothing compares 2 U. It’s been so lonely whitout you here / Like a bird whitout a song / Nothing can stop these lonely tears from falling / Tell me, baby, where did I go wrong / I could put my arms around every boy I see/ But they only remind me of you / I went to the doctor n’guess what he told me /Guess what he told me/ He said, girl, you better have fun / No matter what to do / But he’s a fool / Cause nothing compares / Nothing compares 2 U / All the flowers that you plantede, mama/ In the back yard/ All died when you went away / I know that living with you, baby, was sometimes hard / But I’m willing to give it another try/ Cause nothing compares/ Nothing compares 2U.
Silêncio.
O homem com a cabeça encostada na parede - Às vezes, tenho vontade de ir embora de mim. Abrir a porta e sair. Talvez, para nunca mais voltar. Mas aí penso em você e vejo que não posso ir a lugar nenhum. Você está parado na frente da porta, tampando a saída. Cego, surdo, mudo e paralisado na frente da porta me impedindo de ir embora. É você que me prende aqui, dentro de mim. Por que os pais amam os filhos? Você pode sentir a minha dor? Minha dor. Pelo menos, eu posso senti-la. Quando abro os olhos e vejo que não restou nada no mundo todo, fico feliz em saber que ainda posso senti-la, a minha dor. Somos tudo o que temos, me and my pain. Tem você também, é claro, mas você já não faz mais parte disso aqui. Praticamente, não faz mais parte. Antigamente, você fazia. Antigamente, você podia sentir a minha dor. Antigamente. Boa palavra essa, “antigamente”. Gosto dela. Antigamente, eu gostava de você também. Agora também é uma boa palavra, mas está fora de uso na atual circunstância. Agora.
O homem com a cabeça encostada na parede cai na gargalhada.
Silêncio.
O homem com a cabeça encostada na parede - “Por que eu sou tão infeliz?” Você me pergunta. Eu, aliás. Eu, na minha cabeça, com a sua voz, me pergunto porque você é tão infeliz. E eu te pergunto outras coisinhas, com a minha própria voz, mas você se cala para mim dentro da minha maldita cabeça. Eu me calo. Eu calo a sua voz na minha maldita cabeça. O silêncio da imaginação. Eu gosto de ouvir a sua voz. É como se você ainda estivesse aqui. Aliás, você ainda está aqui, mas é como se não estivesse mais. A não ser pela sua voz dentro da minha cabeça, que nem é, de verdade, a sua voz, é como se você não estivesse mais aqui. Mexa-se, idiota! Esboce uma reação qualquer, eu não vou ficar aqui para sempre, você tem que aprender a se virar sozinho. Vou te deixar, em breve. Tenho que cuidar da minha vida, não posso mais ficar aqui te fazendo companhia. Você precisava se ouvir, dentro da minha cabeça, me implorando para não te abandonar. Reaja! Não se humilhe mais assim. É muito pior para você, cego, surdo-mudo, imóvel e humilhado, um quadro realmente deprimente. Em breve, um longo tempo, muito em breve.
Silêncio.
O homem paralisado começa a roncar.
O homem com a cabeça encostada na parede - Está dormindo... Sonhando talvez. Comigo talvez. Talvez com outra coisa. Um avião. Você sempre adorou aviões. O céu. Coisas azuis. Azuladas. Meus olhos eram azuis mas escureceram com o tempo. Os seus olhos ficaram azuis quando você ficou cego. Você nunca pode se ver de olhos azuis. Eu também não. Não posso te ver assim. Nunca mais pude te olhar de frente. Vivo de costas para você, mas você nem percebe. Nem que estou aqui, nem que estou de costas, nem nada. Você está fechado para o mundo. Queria muito que você fosse embora num avião. Para longe, muito longe. Não suporto sua companhia estável. Você nunca se altera, não se mexe, não me responde. Por que os pais amam os filhos?
Silêncio.
O homem com a cabeça encostada na parede - Tenho chorado muito ultimamente. Por que a gente sempre tem vontade de chorar quando fica no escuro? Tenho chorado muito ultimamente. Eu sei. Não está escuro aqui. Mas é como se estivesse. Será que você chora também? Você está sempre no escuro, na cegueira. Será que não? Será que você está vendo a luz? Será que você está a salvo aí dentro da sua cegueira silenciosa e inerte enquanto eu me debato aqui na claridade dos ruídos? Bonita frase. Mas realmente gostaria de saber se você está chorando por dentro, chorando por mim. Gostaria de saber se você está sofrendo, sofrendo por mim. Eu estou. Sofrendo, quero dizer. De dor no estômago. “Autocentrado!”, você acaba de dizer.
Silêncio.
O homem com a cabeça encostada na parede - “Lembra-se?”, você diz. Eu me lembro de tudo. Sou um verdadeiro homem-elefante, é o que eu te repondo. “Por favor, esqueça, esqueça!”, é o que você me diz dentro minha cabeça. “É você que me mantém preso aqui, paralisado, sem poder me mexer. Se eu me mexer saio correndo para longe de você”, é o que você está me dizendo, nesse exato momento, dentro da minha cabeça. “Você tem pavor de ficar sozinho é por isso que não te abandono”, é o que você continua dizendo dentro da minha cabeça, “É por isso que não morro”. Agora está calado. Esperando que eu responda. Bobagem. Bobagem. Você já disse isso antes e nada mudou. E, aliás, nem foi você quem disse isso. Fui eu. Sou eu que não quero me deixar sozinho. Sou eu, dentro da minha cabeça, que digo a mim mesmo que não quero me deixar sozinho. Só estou fingindo que é você. Usando suas antigas palavras. Suas antigas palavras. Minhas antigas boas respostas. “Vá se foder, sua estátua desgraçada!”.
Silêncio.
O homem com a cabeça encostada na parede - Boas recordações. Nossas antiguidades. O som da sua voz na minha cabeça? Isso é uma novidade. Não é tão boa assim, mas é o que nos mantém presos um ao outro. Nada mais. Apenas a sua voz dentro da minha cabeça é que me traz necessidade da sua presença. É por isso que estamos aqui, porque sou um verdadeiro homem-elefante. “Por favor, esqueça, esqueça!”. Por que os pais amam os filhos?
Silêncio.
O homem com a cabeça encostada na parede - Você sempre se cala nas horas importantes. Estou exausto. Em alguma outra hora terminamos essa conversa. Quem sabe? Algum dia. Tudo termina em algum momento. Em algum outro momento. Nós vamos conseguir resolver isso. Nosso impasse. Quem precisa de quem. Em algum momento, as coisas vão ficar claras. Não agora. Em breve, um longo tempo, em breve. Não fale nos meus sonhos, por favor. Fique quieto e me deixe descansar. Pelo menos um pouco de silêncio. De solidão. Você tem pavor de ficar sozinho é por isso que não te abandono. Nem vou te abandonar. Por enquanto. Um dia, em algum outro momento, vou. Agora só vou dormir, não tenha medo. Vou ficar bem aqui ao seu lado, o tempo todo. É apenas um soninho. Um descanso. Fique quieto e descanse você também, por favor. Depois terminamos. Não tem explicação. Não há como se explicar uma coisa dessas.
O homem com a cabeça encostada na parede deita-se no chão. O homem acorrentado abre os olhos e assovia uma canção de ninar.