25.2.04

DÉJÀ VÉCU

Solidão de carnaval, solidão na multidão. Tão clichê, tão bêbada.
Em plena Av. Rio Branco tocou (muito provavelmente apenas dentro da minha cabeça) uma música completamente improvável - uma das minhas músicas. Identifiquei pela introdução de baixo que aprendi a imitar com os dedos e a voz.
Estou exausta quase o tempo todo, mas, principalmente, quando acordo. Durmo mal, sonho demais. Estou aprendendo a usar parênteses e esquecendo como se escreve e diz várias palavras. Minha tireóide não produz mais TSH. Meu corpo já começa a falhar. Meus pés doem e sofro ao levantar da cama. Meus cabelos estão caindo muito. Tenho 26 anos, o que é ridículo. Estou com um enorme peso - o tempo me dá peso e ele passa de maneira aviltante, me sobrecarregando de tudo o que eu quero trucidar.
Eu perdi todos os detalhes.Estou seguindo, como louca, atrás do que ficou para trás de mim. Tenho abundância de reminiscências - no sentido platônico do termo - mas minha memória involuntária é também inútil, não me teletransporta e eu preciso ser teletransportada.
Estou cansada de me despedir de tudo.Vivo da sensação de já haver estado em um lugar, quando isso, na realidade, não aconteceu. Todo mundo me diz o contrário.
Quando aconteceu?
Há muito tempo, aconteceu.
Há muito tempo as coisas não eram assim.

23.2.04

EM MÔNACO

Experimento frases em você.

" Você me soa irrelevante."

É claro que não, é tudo parte da verdade que se dá entre nós. Você entende de imediato - enquanto tomo banho e você escova os dentes. E é tão relevante isso tudo que vivemos que você desmente o que as revistas femininas - desde nossa adolescência até agora - disseram sobre casamento e intimidade demais, e me diz uma coisa muito, muito íntima:

(E o que diriam de nós agora essas revistas femininas?)

Será que nossos gatos entendem? Será que eles sabem de nós? Eu sei - e você sabe - que sabemos.

E sei também - acho que isso você não sabe - que, em Mônaco, a prova de Fórmula 1 é disputada pelas ruas do Principado.

BREVE RELATO DE UMA VIAGEM QUE PODERIA SER APENAS UMA CATÁSTROFE, MAS NÃO FOI.

Comprimidos um contra o outro, dentro de uma ilha minúscula, em pleno oceano índico.

Ainda por cima, havia uma árvore equatorial, não catalogada, ocupando aquele espacinho de nada à nossa volta. Uma árvore que balançava seus galhos enormes naquela brisa quente e úmida – estranha, muita estranha, muito quente, muito úmida – e nos comprimia mais e mais. Um contra o outro.
Uma árvore inédita, carregada de um fruto inédito com uma aparência deliciosa - formas cônicas azuis, com um cheiro doce muito atraente.
Provavelmente, deveríamos comê-los. Mas a leitura prévia da bíblia – quando ainda não estávamos perdidos – nos impedia de provar daquela que poderia ser a árvore da vida.
Apareceu a serpente e não nos disse nada. Nem precisava.

Um dia, acordei e você tinha comido a fruta. Morreu envenenado em questão de segundos.

Mas, numa coincidência berrante, apareceu - no exato momento em que despertei e te vi morto - um navio para me tirar dali. Enterrei você ao pé da árvore e a ilha toda virou apenas seu túmulo. Carreguei comigo várias daquelas frutas azuis. No continente, valeram ouro. Tinham um veneno que era a cura do câncer.Se você estivesse com câncer teria se salvado.

(21/02/2004) O resto é silêncio

Levantou poeira.


19.2.04

BLÁ BLÁ BLÁ COM GÁS ASFIXIANTE

Fingi que estava chovendo para não sair, mas acho que ela percebeu que não chovia. Moramos muito perto. Ela estava ligando de casa - pelo menos, era isso o que me dizia a bina do telefone.
Da minha janela, mal dá para ver o céu nublado. O edifício em construção obstrui completamente a visão. Foi olhando para baixo que vi o chão molhado - não devia ser chuva, devia ser água de mangueira. O zelador lavava a calçada.

- Está chovendo torrencialmente aqui... Não posso nem chegar perto da janela.

- Então, fica longe da janela.


O que eu podia responder? Nem entendi direito se era uma gracinha ou uma provocação. Mergulhamos, logo em seguida, em um silêncio torturante. Cento e oitenta segundos sem nada para dizer um ao outro e, ainda assim, permanecíamos ao telefone. Eu sabia que estava na minha vez de falar, mas foi ela que - pressentindo, ela era muito boa mesmo em pressentimentos - reiniciou aquele fiapo de conversa.

- Eu posso ir aí...

- Imagina! Você precisaria de um barco...

- Eu costumo enjoar em barcos...

- Eu sei.


Micropausa que transpirou o desespero de outro silêncio torturante. E... A ligação caiu. Arranquei o telefone da parede num escorregão majestoso, foi por isso que a ligação caiu.

O sol estava brilhando, o céu estava lindo. Inventei uma chuva e fiquei em casa, com o gás aberto à toa.


Mesmo contra a minha vontade, ela pegou um barco, foi até a minha casa e abriu as janelas, dissipando o ar venenoso.
Respirei novamente mesmo sem querer. Meus pulmões nunca me obedecem, só vão atrás de suas próprias necessidades. Meu coração continuou vazio, mas me arrependi um pouco de tudo. As mãos delas ficaram geladas para sempre.


(Tenho a impressão de ter perdido todos os diálogos)


12.2.04

Não sei dizer o quanto doeu em você pensando melhor, sei sim Somos bem mais parecidas agora posso ver no espelho Você está ficando realmente velha eu ainda não Mas o tempo está passando ao mesmo tempo agora isso faz diferença Talvez haja uma possibilidade de marcarmos um encontro há uma distância segura Será?

De onde ela escreve não pode ver as lágrimas nos meus olhos nem nos seus Por causa do mar que invade tudo entre nós três, quatro, cinco, seis quantos somos agora? Contamos os mortos? 1,2,3,4,5... não chega a seis.

10.2.04

MENSAGEM NA GARRAFA

"Quer dizer que de onde você escreve dá para ver o mar?"

Coloque a cabeça para fora da janela.

Um corpo na espuma do mar. Meu corpo, branco de sal, devorado por tubarões brasileiros na praia de Copacabana, em frente ao seu prédio clássico, de música clássica. Estou triturada, você olha nos meus olhos e não me reconhece. Algum dia você me reconheceu nos meus olhos? Quem era aquele cara que veio com você reconhecer meu corpo?

Você lê o bilhete que escrevi no torso:

"Estamos todos ardendo em febre e isso é o que nos torna vivos. Delirantes, mas vivos. Mas, apesar disso, não paramos com os antitérmicos. Combatemos a febre, para morrer nossas vidas na paz do senhor. É melhor se entregar aos tubarões - foi o que pensei."

Voce desiste e volta para o Noturno Opus 15.

O cara que estava junto com você, quando foi reconhecer meu corpo, era um advogado. Você teve medo de que eu te difamasse.

Eu te difamo.


Resposta a Ninguém - Será? De onde você escreve tem vista?

FACIITE PLANTAR

Por causa dela, ando tão devagar. Meus pés doem.

Por causa dela, vago.

9.2.04

TRECHO DE DILACERADO - INPSIRADO EM POEMA DE ELIZABETH BISHOP "UMA ARTE".


Perder não deveria ser algo, assim, tão imponderável. Tantas coisas possuem, em si, a tendência de se perderem, de serem perdidas, que perder não deveria ser nada, assim, tão improvável.
Perde-se corriqueiramente, cotidianamente. Deveríamos saber exatamente como é, o que se sente diante do desaparecimento – repentino e definitivo – do relógio de pulso que nos acompanhou nos últimos quatro, cinco anos; diante do aparelho que traça – em linha reta – o último beat de um coração que não deixava de ser nosso também. A arte de perder não é nenhum mistério, mas na maioria dos casos, parece. Porque nunca estamos preparados. Preferimos, negando todas as evidências, fingir que esse é o tipo de coisa que não acontece, que não costuma acontecer. “Não, ninguém, morre, nada tem fim.”
Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, a chave perdida, o tempo perdido. Perdi duas mães lindas e um primeiro namorado; dois pais e mais um continente de avós, lembranças, casas, nomes. Perdi meu próprio rosto inúmeras vezes. Tenho saudades deles. Tenho saudades de mim. Mas isso não é nenhum desastre – é tudo parte do que nos torna vivos.


* DILACERADO É A NOVA PEÇA DA CIA. TEATRAL OS DEZEQUILIBRADOS - DA QUAL SOU DRAMATURGA.

ESTRÉIA EM ABRIL.

4.2.04

Quanto silêncio. De repente, nada mais adiantava. “O limite é muito sensível”, pensava, batendo a cabeça contra a máquina. Não podia fazer mais nada. Nem precisava. Nada a fazer.
Havia a espera, mas isso não chegava a ocupá-lo e ele sentia uma necessidade doentia de ocupação. Não temia a espera, nem sequer queria apressá-la. Apenas não a encarava como uma espécie de ocupação.
“Preciso ir”, pensou.
Lembrou de Lorde Jim, indo para o mar toda vez que perdia o horizonte. Pensou no naufrágio. Lembrou-se que Conrad, fora de fato, marinheiro.
“Moscou, Moscou”.
Desligou o computador e fui dormir, com seu inseparável e inútil vidro de calmante.
“Preciso é de heroína”, zombou, fitando a tarja preta. Mas não acreditava mais em remédios. Já fazia muitos anos que não sabia como lidar com aquilo. Nada o acalmava. Havia um buraco discreto em seu estômago. Quase não o atrapalhava em nada, apenas gritava o tempo todo que ele deveria voltar.