30.1.04

ACELERAÇÃO DA GRAVIDADE

Chave na mão, abre a porta do carro. Senta diante do volante e liga o motor. Pisa na embreagem. Passa a primeira marcha e, num átimo, acelera tudo o que pode contra o muro branco à frente, distante o suficente.

Sangue na mão, não enxerga mais porta alguma.



29.1.04

Ontem à noite, antes de perder meu próprio continente, notei que havia perdido as chaves de casa para sempre. Foi isso o que aconteceu. Perdi as chaves de uma maneira irreversível.

Diante do túmulo da minha mãe, consigo ver, com absoluta precisão, o momento exato em que as perdi.

Durou um câncer e três anos. Um estado de coma de cinco dias. Um vômito que excretou o fígado e a mãe de três meninos do próprio corpo. Foi nesse momento que perdi as chaves.

Depois, como Lord Jim, fiquei observando num misto improvável de traquilidade e desesepero o navio afundar aos poucos, muito aos poucos. Agonizou por vinte anos no mar.

Há qualquer coisa em mim de quem sobrevive a um naufrágio.

Em nós, quero dizer, em nós.

para Maitê e Guto, com quem já não consigo mais falar.

A HISTÓRIA DE AMOR DO HOMEM-DE-LATA



O Homem-de-lata está sentado num balanço sozinho, balançando-se lentamente. Atrás dele, há a projeção de um gráfico de batimento cardíaco em ritmo normal.

Homem-de-lata canta Can’t smile without you. Entra uma jovem com uma longa corrente presa em seu pulso, parte da corrente permanece fora de cena.
Jovem -
Algum problema, senhor?

O Homem-de-lata não responde e continua cantando. A projeção passa a ser de um coração muito acelerado.

Jovem - Então está tudo bem... Para alguém cantar assim, deve estar tudo bem...
Pausa. O Homem-de-lata continua a cantar, cada vez mais melancolicamente, a jovem permanece a observá-lo.

Homem-de-lata - Eu não tenho coração.
J- O quê?
H- Eu não tenho coração.
J- Não tem?
H- Não.
J- Por que não tem? Perdeu?
H-
Não, nasci sem coração.
J- Hum...

A jovem começa a ir embora.

H- Eu queria ter... um coração. Eu queria ter... Uma vicerazinha dessas dentro de mim, eu queria ter.
J- Quer o meu?

Silêncio. O Homem-de-lata está perplexo.

J- Quer o meu?

O Homem-de-lata exitado e comovido diz - Quero...

A jovem dá meia-volta e sai do palco. Depois volta trazendo nas mãos seu coração, uma pesada bola-de-ferro - essas de prisioneiros - que está ligada a corrente que a prende pelo pulso. Atrás, a projeção passa a ser de um coração morto.

A jovem entrega seu coração ao Homem-de-lata e diz - É um coração muito pesado.

A jovem vai embora deixando seu coração com o Homem-de-lata. A corrente, de acordo com o distanciamento da jovem, vai se estendendo até alcançar o máximo e ficar completamente esticada.

O Homem-de-lata fica parado em pé, na frente do balanço, com o coração da jovem na mão e diz, ainda muito comovido - Acho que posso aguentar. Na verdade, me parece um coração muito leve.

O Homem-de-lata senta-se outra vez no balanço, com o coração da jovem no colo, e canta outra vez a música Can’t smile wihtout you.

O Homem-de-lata chora e a projeção volta a ser de um coração normal.

13.1.04

OBJETO-CORAÇÃO - n°1

Um gravador, no meio do palco, repetindo a frase: Nunca paro de dizer seu nome, nunca paro. Depois de um certo tempo, entra um homem com uma folha de papel ofício em que está escrito, "Julieta". Ele pára e levanta a folha como se fosse um cartaz. Então, várias pessoas - homem e mulheres - começam a entrar com cartazes semelhantes - uns escrito "Julieta", outros escrito "Romeu" - e fazem a mesma coisa até o palco ficar completamente cheio de gente.
Black-out.
Todos deixam o palco, ficando apenas o primeiro homem que entrou e o gravador, que pára depois de um tempo. Desce um megafone do teto. Entra um outro homem que vai até o megafone e fala:


Homem no megafone - Chegou um telegrama para você?

Desce um telegrama do teto na frente do primeiro homem, ele o apanha e lê.


Homem no megafone - Então, o que está dizendo?
O homem, com o telegrama na mão, sussurra - Palavra é só uma coisa para se dizer.
Homem no megafone - Palavra é só uma coisa para se dizer.
O homem, com o telegrama na mão, sussurra - E uma só palavra é muita coisa.
Homem no megafone - E uma só palavra é muita coisa.
O homem sempre sussurando - Uma palavra é muita só coisa para se dizer.
Homem no megafone - Uma palavra é muita coisa só para se dizer.
O homem - Por isso te escrevo.
Homem no megafone - Por isso te escrevo.
O homem - Para não dizer só por dizer.
Homem no megafone - Para não dizer só por dizer.
O homem - Por isso eu só te escrevo.
Homem no megafone - Por isso eu só te escrevo.
O homem -Só para poder não dizer nada às vezes.
Homem no megafone - Só para poder não dizer nada às vezes.
O homem - Palavras só escritas.
Homem no megafone - Palavras só escritas.
O homem - Sílabas tônicas em repouso.
Homem no megafone - Sílabas tônicas em repouso.
O homem - Palavras pelas quais posso pagar.
Homem no megafone - Palavras pelas quais posso pagar.


O homem tira um isqueiro do bolso e queima o telegrama. Depois que o telegrama é queimado, o Homem no megafone fala:

Homem no megafone - Então qual é sua resposta?
Homem- Minha resposta?
Homem no megafone - Qual é sua resposta?
Homem - Eu não tenho nada a declarar. Sai de cena.

Homem no megafone começa a cantar "As flores do jardim da nossa casa" de Roberto Carlos. Quando ele acaba de cantar, o outro homem volta com uma folha de ofício onde está escrito: “Chegou um telegrama para você” - ele entrega ao Homem no megafone que a lê em voz alta. Desce um telgrama na frente do Homem no megafone, ele o apanha.

Homem - Então o que diz aí?
Homem no megafone - Nada.
H- Está escrito nada ou não está escrito nada.
Homem no megafone - Está escrito nada e depois não está escrito mais nada.
H- Só isso?
Homem no megafone - Só nada.
H- Só e isso quer dizer muita coisa.
Homem no megafone - Quer dizer que você pensa que as palavras custam caro.
H- E isso quer dizer muita coisa.
Homem no megafone - Só.

O homem incendeia também este telegrama e depois vai até o gravador que está no chão no meio do palco e o liga novamente. O gravador volta a repetir : Nunca paro de dizer seu nome, nunca paro. Depois sai de cena. O Homem no megafone começa então a dizer a mesma frase. A multidão com os cartazes Romeu e Julieta volta e novamente enche o palco. Black-out. Apenas o som do gravador e do Homem no megafone. Depois, silêncio.

Voz em off do Homem:Palavra é só uma coisa para se dizer.
E uma só palavra é muita coisa.
Uma só palavra é muita coisa só para se dizer.
Por isso te escrevo.
Para não dizer só por dizer.
Por isso só te escrevo.
Só para poder não dizer nada às vezes.
Palavras só escritas.
Sílabas tônicas em repouso.
Palavras pelas quais posso pagar.


No gravador começa a tocar a mesma música de Roberto Carlos.

Homem no megafone: Nome é so uma palavra que se diz, só uma palavra que se escreve sem que se queira dizer nada com isso, sem que se queira dizer nada com escrever ou dizer, quando se escreve ou se diz um nome. Quando se escreve ou se diz um nome só se está escrevendo ou dizendo um nome, próprio ou não. Só e isso quer dizer muita coisa. Um nome é só uma palavra. Uma palavra é só uma coisa que se diz.Uma só palavra é muita coisa. Uma palavra é muita coisa só para se dizer. Mesmo assim, nunca paro de dizer seu nome, nunca paro. Por isso não te escrevo. Não é porque penso que as palavras custam caro mas porque nunca paro de dizer, nunca paro de dizer. Seu nome, nunca paro de dizer, nunca paro.

A multidão acende isqueiros e incendeia seus cartazes até acabar a música.